Amigo virtual 2










Amigo virtual
Nélio Bessant
É comum vermos as crianças conversando com seus amiguinhos invisíveis. Conversam, brincam, aprendem com eles. Os amiguinhos invisíveis são primordiais no desenvolvimento afetivo e social das crianças. À medida que elas vão crescendo, aquelas entidades se afastam, até mesmo pela própria condição espiritual de cada uma. Assumem novas tarefas em outros planos. Para o ser humano, essa separação se dá ainda na segunda infância, ou, no máximo, na entrada da adolescência. Ao ver-se sozinho, o adolescente é forçado a se adaptar ao seu novo mundo. Daí, talvez, todos os conflitos próprios da fase.
Esta constatação nada tem de científico, nem pode ser comprovada. É minha. É a minha verdade.
Na minha idade, tenho amigos reais e também os tenho no plano virtual.
Um desses virtuais (atende pelo nome de Oswaldo), extremamente sensível, veio ter comigo ainda ontem.
- O que está acontecendo com você, meu amigo? - perguntou-me.
- Comigo? Nada ! Está tudo bem, tudo ótimo - tentei disfarçar.
- Ah ! deixa disso, cara ! Comigo você pode se abrir. Diga lá.
- Verdade mesmo, não há nada de errado comigo - tornei a mentir.
- Então tá! Você se esquece que por eu ser virtual, tenho prerrogativas que você não tem; vou onde você não pode ir; vejo coisas que você não vê; sei de coisas que você não sabe...
- E daí? indaguei curioso.
- Daí que eu sei, e muito bem, o que está havendo com você. Sei que você está muito mal. Só queria que você mesmo me contasse, pusesse prá fora a dor que você está sentindo em seu peito. Seria bom prá você e tornaria mais fácil a minha tarefa de ajudá-lo. Aliás, eu vou ajudá-lo de qualquer forma, mas é melhor que seja como deve ser: você me contando tudo e me pedindo auxílio, certo?
Confesso que fiquei surpreso. Não conhecia tais 'poderes' dos amigos virtuais. Mas, achei melhor não contrariar quem se dispunha a me ajudar. E, timidamente, a princípio, abri meu coração com meu amigo. Ele se manteve calado o tempo todo em que eu falava, e, à medida que os detalhes iam enriquecendo minha narrativa, ele parecia mais se interessar por meu caso (como se ele já não soubesse de tudo).
Ao final de meu relato, de coração mais leve e com o rosto ainda úmido pelas lágrimas que o banharam, após um breve silêncio de nós dois, tive coragem de perguntar:
- E então, brother? Há remédio? Você vai poder me ajudar de alguma forma?
- Mas claro - disse-me ele quase num sussurro - Estou aqui prá isso. Posso e vou ajudá-lo. Só não posso antever o resultado de minha ajuda. Isso não me é permitido saber. Até nós, virtuais, temos nossas limitações.
Dizendo isso, enfiou a mão no bolso da túnica azul claro que trajava, e de lá retirou um pequeno pergaminho enrolado, envelhecido pelo tempo, e, ao passá-lo prá mim, sentenciou:
- Ofereça isto a ela. É tudo que posso fazer por vocês. É a última coisa que você pode fazer por ela. A beleza tem o dom divino de tocar o coração das pessoas.
Abri o velho pergaminho e, lá, vi escrito o que aqui copio para você, minha linda musa:
M E T A D E
"Que a força do medo que eu tenho
não me impeça de dizer o que anseio
Que a morte de tudo que acredito
não me tape os ouvidos e a boca
porque metade de mim é o que grito
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que ouço ao longe
seja linda, ainda que tristeza.
Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida
e a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
nem sejam repetidas com fervor.
Apenas respeitadas
como a única coisa
que resta a um homem
inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que ouço
mas a outra metade é o que calo.
Que esta minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.
Que essa tensão que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que penso
e a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne, ao menos, suportável.
Que o espelho reflita em meu rosto
um doce sorriso que me lembre
o viver da infância.
Porque a metade de mim é lembrança do que fui
a outra metade... não sei.
Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
prá me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo
mas a outra metade é cansaço.
Que o amor nos aponte uma resposta
mesmo que ele não saiba
e que ninguém o tente complicar.
Porque é preciso simplicidade
para fazê-lo florescer.
Porque metade de mim é platéia
e a outra é canção.
E que a minha loucura seja perdoada
porque metade de mim é amor
e a outra metade...
também ! "